segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Das coisas que sei contar...

De vida eu não sei nada. Sei de estrelas, de flor, de sol e do pé de nuvem que meu avô me deu. Se souber conversar sobre isso, acho que eu consigo. É que também não gosto muito de falar com gente. Na verdade, até gosto, mas não sei falar sobre coisas que todo mundo fala. Falo de absurdidades, já dizia minha mãe.

Das vezes que falei de seriedades sempre lembrei do meu pé de nuvem. Nunca vi algo tão bonito e tão branquinho. O Vô me deu quando ainda era menina. Mandou eu engolir a semente e ficamos olhando pra dentro. O Vô via as nuvens se formando em mim e ria. Falava que dali pra lá eu seria cada vez de uma forma. Um dia brinquedo, outro bicho e até flor. Ás vezes eu também ia ser nada. Mas, tudo ia depender de quem me molhasse.

Eu quis saber o que ele tava vendo. Ele não quis contar. Me abraçou forte e falou que agora era macia que só, pois a alma plainava feito fumaça branca no céu.

Carla Abreu

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Beatriz

Ela apareceu num dia meio sim e meio não. Aqueles dias que você não sabe se faz sol ou chuva. Acho que na hora da chegada não chovia. Veio como Régia-flor, mas não se abriu e nem cheirou pelo ar.

Fez se apenas presença contínua.

Trazia sinais reconhecíveis pela face e perfil do grão maduro da vida. Soltou um chiado de voz, como se avisasse que chegava pra mim.

Se enfeitou de cores mudas...

Carregou meus olhos por entre as mãos, encostou na minha face e disse em silêncio que seria minha,

filha.


Carla Abreu

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Do que se vê pelas frestas

Dia desses abri a janela de casa. Aqui não tem muita graça fazer isso. As pessoas passam correndo, os carros fazem uma barulheira que só vendo e sempre dou de cara com a vizinha da frente, na varanda.

Lá em Minas que era bom. De manhã eu já corria pra janela, passava o João entregando leite, feliz da vida. Depois os netos da dona Sinica vinham vendendo verduras num carrinho de mão. O sino da escola batia e era por ele que a mãe marcava as horas.

Ela não gostava de relógios, dizia que só servia pra apavorar a gente. Tinha que fazer tudo com pressa e nada ficava bom. Eu até hoje não sei usar relógio. Lá se marcava o tempo pelo cheiro.

À noite a gente ficava na varanda escutando o pessoal passar e contar alguma coisa. Sempre tinha uma novidade.

O Chico passava todo dia por volta da hora que só se sente o cheiro do sono. A Dona Mariquinha dizia que : “ lá vinha o cachaceiro”. Eu não gostava que falassem dele assim. Ele era a pessoa mais engraçada dali, tinha bicho de pé e ria daquilo. Falava de nuvens que sobem e descem, de árvores que alcançavam o céu com as mãos e falava de gente. Não como a mãe e a tia falavam. Ele falava de alma de gente. De olhar cheio de flores vindo não sei “daonde”. De sorrisos misturados com bebidas de uva.

De paixão...

Certa vez ele ouviu falar que uma moça havia fugido com o homem do circo. Cada um falava uma coisa sobre isso. O Chico sentou na calçada e disse pra mim que aquilo era fogo no peito e que era bonito fazer as coisas assim, queimando por dentro.

Tempos depois vim descobrir que o Chico falava do fogo que acalenta a vida.