quinta-feira, 18 de novembro de 2010

SaudosIdade

“ O tempo passa”, a gente ouve isso a vida toda e não se dá conta da velocidade com que isso acontece. Mas pior que o tempo passar é o que passa com ele. Sorrisos, abraços, laços esquecidos ou desfeitos,promessas, pessoas.

Ah, pessoas! Essas sim, não deviam passar nunca. Nem as que foram ruins, todas deviam continuar ali, estáticas. Esperando um pedido de desculpas, um “eu te amo”, um “talvez”. Queria todas ali pra eu poder gritar, amar, esbravejar, olhar...

Sim, eu queria poder olhar cada uma. Contar das minhas novas e velhas-idades. Mostrar o que eu aprendi a fazer com nuvens e que o sol de vez em quando visita meu quarto e acordo sorrindo e esqueço o mau-humor matinal e que sei do cheiro das cores e que a vida ensinou tanto,

de flores e farpas.

Queria ter mais delas, além do insistente gosto de passado que trago na boca do meu peito.


Carla Abreu

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Das coisas que sei contar...

De vida eu não sei nada. Sei de estrelas, de flor, de sol e do pé de nuvem que meu avô me deu. Se souber conversar sobre isso, acho que eu consigo. É que também não gosto muito de falar com gente. Na verdade, até gosto, mas não sei falar sobre coisas que todo mundo fala. Falo de absurdidades, já dizia minha mãe.

Das vezes que falei de seriedades sempre lembrei do meu pé de nuvem. Nunca vi algo tão bonito e tão branquinho. O Vô me deu quando ainda era menina. Mandou eu engolir a semente e ficamos olhando pra dentro. O Vô via as nuvens se formando em mim e ria. Falava que dali pra lá eu seria cada vez de uma forma. Um dia brinquedo, outro bicho e até flor. Ás vezes eu também ia ser nada. Mas, tudo ia depender de quem me molhasse.

Eu quis saber o que ele tava vendo. Ele não quis contar. Me abraçou forte e falou que agora era macia que só, pois a alma plainava feito fumaça branca no céu.

Carla Abreu

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Beatriz

Ela apareceu num dia meio sim e meio não. Aqueles dias que você não sabe se faz sol ou chuva. Acho que na hora da chegada não chovia. Veio como Régia-flor, mas não se abriu e nem cheirou pelo ar.

Fez se apenas presença contínua.

Trazia sinais reconhecíveis pela face e perfil do grão maduro da vida. Soltou um chiado de voz, como se avisasse que chegava pra mim.

Se enfeitou de cores mudas...

Carregou meus olhos por entre as mãos, encostou na minha face e disse em silêncio que seria minha,

filha.


Carla Abreu

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Do que se vê pelas frestas

Dia desses abri a janela de casa. Aqui não tem muita graça fazer isso. As pessoas passam correndo, os carros fazem uma barulheira que só vendo e sempre dou de cara com a vizinha da frente, na varanda.

Lá em Minas que era bom. De manhã eu já corria pra janela, passava o João entregando leite, feliz da vida. Depois os netos da dona Sinica vinham vendendo verduras num carrinho de mão. O sino da escola batia e era por ele que a mãe marcava as horas.

Ela não gostava de relógios, dizia que só servia pra apavorar a gente. Tinha que fazer tudo com pressa e nada ficava bom. Eu até hoje não sei usar relógio. Lá se marcava o tempo pelo cheiro.

À noite a gente ficava na varanda escutando o pessoal passar e contar alguma coisa. Sempre tinha uma novidade.

O Chico passava todo dia por volta da hora que só se sente o cheiro do sono. A Dona Mariquinha dizia que : “ lá vinha o cachaceiro”. Eu não gostava que falassem dele assim. Ele era a pessoa mais engraçada dali, tinha bicho de pé e ria daquilo. Falava de nuvens que sobem e descem, de árvores que alcançavam o céu com as mãos e falava de gente. Não como a mãe e a tia falavam. Ele falava de alma de gente. De olhar cheio de flores vindo não sei “daonde”. De sorrisos misturados com bebidas de uva.

De paixão...

Certa vez ele ouviu falar que uma moça havia fugido com o homem do circo. Cada um falava uma coisa sobre isso. O Chico sentou na calçada e disse pra mim que aquilo era fogo no peito e que era bonito fazer as coisas assim, queimando por dentro.

Tempos depois vim descobrir que o Chico falava do fogo que acalenta a vida.

sábado, 10 de julho de 2010

Dis-traídos

Certa vez peguei Vovó chorando em compulsão de dor bem grande e o Vô com os olhos vermelhos. Quis saber o que era e ninguém falou nada.

Dias depois soube por uma conversa entre minhas tias que a mais nova estava grávida e seria mãe solteira.

Fui perguntar o Vô porquê aquilo de ser mãe solteira era tão triste. Ele veio dizendo que não era assunto pra mim, que só gente grande falava disso. Mas, insisti.

_ Vô, o que tem ser mãe solteira?

Ele ficou calado me olhando, como se não soubesse o que responder. Acho mesmo que ele não sabia.

_ Mas Vô, ser mãe não é a coisa mais linda do mundo?

_É.

_Quando eu estava na barriga da minha mãe você chorou também?

_ Claro que não.

_ Então o bebê da tia não vai saber que te vi chorando quando ele tava lá dentro, tá?

_ Por quê?

_ Ele não precisa saber...

_ Hum...Um dia você entende.

_ Coração de gente não sabe quando se nasce de mãe solteira, sabe?

_ Não.

_ Só sabe que nasce, não é?

Ele ficou me olhando e os olhos encheram novamente. Chegou pertinho e falou:

_ Obrigado.

Nem respondi, na hora não entendi o que aquilo significava...

Do dia em que fui flor

Quando me fizeram de flor na escola, cheguei em casa contente pra contar pro meu avô.
Ele pediu que eu imitasse como flor fazia e eu fiz. Fiquei quietinha e de vez enquando balançava devagar. A mãe veio da cozinha braba e disse que eu tinha que ficar paradinha, que flor não se mexia e que eu ia fazer feio. E eu quis saber como fazia se ventasse. Ela ficou quieta. O vô veio e me abraçou rindo, depois disse:

_ Que bom que flor criança não tem espinhos!

terça-feira, 25 de maio de 2010

Entendimento

Acabava o carnaval e pronto, a cidade murchava. Começava a Quaresma e a grande maioria católica da cidade guardava os quarenta dias em mais profundo luto. Até a natureza ajudava, trazendo as flores roxas de mesmo nome. O padre usava junto com sua batina branca, um manto roxo. A igreja ficava triste. A vida entristecia por aqui.

Na casa da minha Vó durante a Semana Santa, nem se ouvia barulho. Na sexta-feira então, nem na vassoura se pegava. Parecia que Jesus havia acabado de ser crucificado e até a morte de Judas, nada de festa.

Durante a última Semana, a Igreja vivia toda a paixão de Cristo e ainda lembro de algumas senhoras rezando baixinho o terço e chorando durante as procissões. Meu avó ia com os outros homens lá na frente segurando as velas, enquanto um moço vestido de Jesus passava.

Uma vez minha mãe chegou reclamando com a Vó que eu andava muito chorona durante a quaresma. E sem nem me olhar direito a Vó deu o diagnóstico:

_ Isso é espinhela caída. Tem que benzer.

E fomos até a casa da Dona Sebastiana, a “benzedera” oficial da cidade. Confesso que eu tinha um pouco de medo de ser benzida, mas minha mãe falava que ajudava a virar anjinho e isso me convencia sempre.

Quando cheguei na casa dela fiquei escutando ela falar indignada com minha mãe sobre a chuva que caíra no dia anterior.

_ Nunca vi chover em quaresma! Ainda mais no dia da Procissão do Jesus Morto. Se ainda tivesse sido na de Ramos. Pelo menos nessa Jesus tava vivo andando no cavalo, já ontem, tava mortinho no caixão. Uma tristeza só.

_ Pois é.

_ Tinha algo errado com aquela chuva. Era insistente feito choro de anjo.

_ Vai ver eram os anjinhos chorando mesmo.

E eu fiquei sem entender o que fazia ali, se até os anjos choravam...

Carla Abreu

sábado, 15 de maio de 2010

1968

1968

“Ana chegou pra mim assim como um parente que mora longe e vem visitar sem avisar. Você até fica feliz pela presença, mas não faz a menor idéia de como agir sem ter se preparado para recebê-lo. E comigo foi exatamente assim, eu nunca soube como entender a presença dela em minha vida. Eu não estava preparado para tanto que ela ofereceu em tão pouco.”

Inverno de 1968.

Pois bem, estava eu andando pela Praça da Liberdade. Como o de costume, fazia ronda todos os dias naquele lugar. E era de responsabilidade minha que não deixasse as pessoas namorarem e nem conversarem com amigos naquele local. Era incumbido de vigiar e de zelar pela “ordem” daquela parte de Belo Horizonte.

Havia dias que só os pássaros passeavam por ali, e naquela manhã nada parecia ser diferente. Sentei em um dos bancos frios, comecei a olhar o jardim, pensei em como era desconexo tudo aquilo, o país vivia em represálias e eu sentado no centro de onde lhe deram o nome de “Liberdade”. Passei horas imaginando como seria bom sermos todos passarinhos, voar e não ter que voltar. Há anos eu não sabia mais o que significava essa sensação de subida e de pouso próprio.

Quando de repente, me dei conta que do lado esquerdo, há alguns metros de distância, havia uma menina. Cabelos pretos e ralos, franzina, uns 16 anos e até um pouco feia. Mas tinha um olhar engraçado — vivo — e mãos bem pequenas, apesar dos dedos longos — agora, veio a minha lembrança aquelas mãos nitidamente —. Ana as olhava como se tivesse descobrindo algo exuberante, fazia desenhos no ar e de vez em quando ria baixinho. Pude notar pelo envolto das mãos que alguns de seus desenhos representavam formas geométricas, outros eu não conseguia decifrar.

Fui me aproximando e me encantava perceber toda aquela atenção, era impressionante a concentração dela em absolutamente “nada”. Até que perguntei:

— O que está fazendo?

Ela pareceu não me ouvir. Continuou seus esboços no vácuo como se não tivesse ninguém por perto. Eu, um pouco constrangido por ela não ter respondido falei em tom mais grave:

— O que você está fazendo?

Ana me olhou como quem olha alguém cheio de penalidades, fez um sinal com os dedos para que eu chegasse mais perto e no meu ouvido disse baixinho:

— Fabricando sonhos!

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Desejança

Tempo devia ser feito de nuvem. Daquelas que desmancham por conta da chuva ou de acordo com o que a gente quer. Devia passar bem devagarinho trocando os desenhos e em outros casos ser bem veloz e não deixar restos.

Nuvem quando chega de tardezinha some no céu e não fica nem lembrança ou cheiro. Tempo devia ser assim, sem rastros. Pra gente só lembrar do que foi naquele momento e quando chegasse o outro dia começasse tudo outra vez. Noutro céu.

Tempo podia dá de pegar nas mãos, pra poder mudar o contorno..

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Do dia em que ela veio



















Quando eu via o Chico sentado na calçada falando sozinho me dava vontade de me juntar a ele e ouvir suas estórias. Eu até achava que ele não batia bem, só que sempre fui dada àquele tipo de loucura.

Certa vez ele mudou de calçada, veio sentar debaixo da minha janela e repetia sem parar que havia tocado no sol. Olhou pra cima e quando me viu riu, como se tivesse me achando uma tola por duvidar.

Depois o Chico sumiu.

(...)

Quando a mãe me beijou na testa e eu fiquei ali não sabia como seria. Fiquei quietinha esperando tudo. Pensei no girassol que ganhei quando criança e me bateu um gosto de alegria por dentro. Depois achei melhor parar de pensar.

Escutava vozes sem entender nada. Até que de repente um cheiro de azul entrou na sala e quando olhei pra cima vi o sol me entregando um de seus raios. Segurei com força, ouvi de longe um canto em forma de choro. Tudo se aqueceu. Lembrei do Chico e da vez que ele tocou no sol.

E eu me senti iluminada!

segunda-feira, 22 de março de 2010

Das coisas que se aprende sozinho

Tem gente que vive de malas prontas. Estão sempre à espera de algo que as façam partir.
Eu não. Gosto mesmo é de arrumar minha mala dia pós dia. É que tô sempre em conflito sobre o que levar e o que deixar. Uma vez levei tão pouco de mim que coube numa mochila pequena. Pensei que seria mais fácil de carregar.

Senti tanta falta do que julguei desnecessário...

Hoje só faço as malas cautelosamente. Aprendi a me preparar pros dias que sou Sol e praqueles que sou Chuva.

Carla Abreu

sábado, 13 de março de 2010

Primeira vez

Quando minha tia soube que o filho havia morrido foi uma gritaria só. Eu não entendia bem aquilo de morte. Nunca ninguém havia morrido pra mim. E dessa vez não foi diferente, pois eu não o conhecia. Morava numa clínica em Petrópolis, era deficiente.

Porém, isso não impedia que ela gritasse. Eram gritos seguidos de gemidos tão doídos que tive medo da tal morte.

A mãe ficou em casa pra nos arrumar pro enterro. Quando entrei no quarto, ouvi:

_ Ponha uma roupa de cor triste. Nada de cor arregalada, principalmente vermelho. Nem sabia qual cor era triste, mas coloquei uma blusa marron. Acho marron feio e escolhi por isso.

Lá no velório ficava todo mundo de borburinho. Fui ver minha tia. Ela estava perto do caixão. Senti um aperto, doía ver a dor dela ali. Deu vontade de ensinar pra ela como engolir o choro. Minha mãe dizia que era feio chorar alto e perto dos outros.

Meu pai estava sentado do lado de fora. Falei pra ele trocar de blusa. Azul era alegre e não podia. Ele riu e falou que teriam que trocar o caixão, era roxo. Eu nem tinha notado. Roxo era tão arregalado. Nunca mais me esqueci daquele caixão e nem vi outro igual.

Depois do enterro, a casa ficou vazia. A tia sozinha. Cheguei pertinho e fiquei olhando pra ela. O canto dos olhinhos dela molhados. Me deu vontade de chorar, ela sim parecia morta e doeu tanto em mim que chorei.

Só entendi mais tarde que tem gente que morre e fica vivo.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Dois

Vez e outra quando vou à casa da minha avó gosto de olhar a varanda em que tinha um fogão de lenha. Era um cantinho nos fundos e ficava aceso quase o tempo todo. Era bom chegar da rua cheia de frio e ficar esquentando as mãos no calorzinho.

A Vó dificilmente deixava o fogo acabar. Quando tava no fim, ouvia-se:

¬_ José, a lenha!

E o Vô ia pro quintal buscar. Eu ia atrás para pegar as lascas que iam caindo pelo caminho. Nunca o vi fazer isso de mau humor. Até o jogo de baralho ele parava quando ela gritava da cozinha. E quando colocava lenha nova era lindo. O fogo ficava vistoso, colorido. A fumaça ia criando formas na minha frente.

Certa vez o Vô pegou uma brasa meio quente ainda, desenhou na parede ao lado uma flor. A Vô ficou braba que só. Disse que ele teria que pintar a casa toda, que parecia criança com essas bobagens. Eu achei bonito.

Mas o mais bonito de tudo era quando ele chegava da rua, ia até a beira do fogão e mexia na orelha da Vó. Ela fingia brabeza. Levantava a colher de pau como se fosse bater e ele saía de perto rindo. Dava pra ver o sorriso brotando no canto dos olhos dela. Eu ria só baixinho. Ele gargalhava.

Minha Vó não sabia falar de coisas de amor. Ficava rosada quando recebia carinho. Se o Vô mexesse então, ai ai. Além dos resmungos, a única frase que ela dizia era:

_ Fiz seu feijão.

Ele me olhava meio maroto, sem que ela notasse. Era uma espécie de confirmação do óbvio. Ela adorava tudo aquilo.

Depois o Vô morreu. A Vó parou de cozinhar no fogão de lenha. Mandou acabar com o dela. Disse que hoje em dia é melhor fogão a gás.

Pior do que ver aquele canto da casa vazio, é sentir a ausência do calor que ele trazia aos olhos dela.

Carla Abreu