sábado, 15 de maio de 2010

1968

1968

“Ana chegou pra mim assim como um parente que mora longe e vem visitar sem avisar. Você até fica feliz pela presença, mas não faz a menor idéia de como agir sem ter se preparado para recebê-lo. E comigo foi exatamente assim, eu nunca soube como entender a presença dela em minha vida. Eu não estava preparado para tanto que ela ofereceu em tão pouco.”

Inverno de 1968.

Pois bem, estava eu andando pela Praça da Liberdade. Como o de costume, fazia ronda todos os dias naquele lugar. E era de responsabilidade minha que não deixasse as pessoas namorarem e nem conversarem com amigos naquele local. Era incumbido de vigiar e de zelar pela “ordem” daquela parte de Belo Horizonte.

Havia dias que só os pássaros passeavam por ali, e naquela manhã nada parecia ser diferente. Sentei em um dos bancos frios, comecei a olhar o jardim, pensei em como era desconexo tudo aquilo, o país vivia em represálias e eu sentado no centro de onde lhe deram o nome de “Liberdade”. Passei horas imaginando como seria bom sermos todos passarinhos, voar e não ter que voltar. Há anos eu não sabia mais o que significava essa sensação de subida e de pouso próprio.

Quando de repente, me dei conta que do lado esquerdo, há alguns metros de distância, havia uma menina. Cabelos pretos e ralos, franzina, uns 16 anos e até um pouco feia. Mas tinha um olhar engraçado — vivo — e mãos bem pequenas, apesar dos dedos longos — agora, veio a minha lembrança aquelas mãos nitidamente —. Ana as olhava como se tivesse descobrindo algo exuberante, fazia desenhos no ar e de vez em quando ria baixinho. Pude notar pelo envolto das mãos que alguns de seus desenhos representavam formas geométricas, outros eu não conseguia decifrar.

Fui me aproximando e me encantava perceber toda aquela atenção, era impressionante a concentração dela em absolutamente “nada”. Até que perguntei:

— O que está fazendo?

Ela pareceu não me ouvir. Continuou seus esboços no vácuo como se não tivesse ninguém por perto. Eu, um pouco constrangido por ela não ter respondido falei em tom mais grave:

— O que você está fazendo?

Ana me olhou como quem olha alguém cheio de penalidades, fez um sinal com os dedos para que eu chegasse mais perto e no meu ouvido disse baixinho:

— Fabricando sonhos!

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